Por: Malka Birkman Toledano; María Antonieta Pezo e Sandra Berenstein Tudisco

“Examinar o lugar – em sentido abstrato – em que passamos a maior parte do tempo enquanto experimentamos a vida.” (Donald Winnicott, 1971)

“Posso estar no meio de uma bagunça e, então, sair de dentro dela ou posso colocar as coisas em ordem para que eu saiba, ao menos por um tempo, onde estou.” (Donald Winnicott,1971 – O brincar e a realidade pg. 167)

O programa Escuta Solidária

O programa escuta solidária foi idealizado em março de 2020 pela empresa Mão na Roda, que surge no contexto de calamidade sanitária, a princípio, com a pandemia Covid19.

Na tentativa de controle pandêmico foram exigidas algumas medidas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) entre elas o distanciamento e o isolamento físico-social.

A primeira pergunta que nos fizemos foi: como driblar a impossibilidade de encontros presenciais, cálidos e humanos que o isolamento impõe. E como fazer isso com grupos. Os primeiros impasses devido aos pilares que sustentam as formações e encontros grupais: o valor do grupo como sustentador do cuidado e a formação de rede de sustentação. Como continuar apostando à um olhar e uma escuta que valide sentimentos, afetos, pensamentos e condutas? Como promover um espaço de acolhida afetiva?

Consideramos que a situação de sofrimento e pânico social poderiam agravar os quadros de debilidade de saúde física e mental, devido à privação do contato físico com sujeitos de vínculos sociais estruturantes dentro e fora do contexto escolar. Gestores, educadores, crianças, adolescentes, famílias, cuidadores, terapeutas num desmonte de rotinas e cuidados.

Novas rotinas são rapidamente estabelecidas: afastamento físico entre as pessoas que não dividiam a mesma casa, fechamento de todo o comércio que não foi considerado como essencial (farmácias, alimentos e hospitais), rede de televisão aberta tem uma mudança radical em sua programação, passando retratar, grande parte do tempo, as ameaças física, econômica e mentais que este panorama traz. Redes sociais transmitindo notícias de toda a parte do mundo com histórias individuais e grupais. Algumas verdadeiras, outras falsas. Escolas pela primeira vez são fechadas. Empresas demitindo funcionários. Empresas falindo. Pessoas passando fome, outras tantas morrendo sem direito à manutenção dos ritos de luto por parte das famílias.

Em relação ao mundo do trabalho constatamos que parte dos sujeitos passaram a realizar seus ofícios de modo adaptado dentro de suas casas junto a esse novo cenário. As relações e os conflitos do mundo do trabalho passaram a pertencer a vida cotidiana das famílias.

Como atender um cliente, ou um paciente, quando o filho desse profissional se encontra demandando simultaneamente os pais? Como passar das rotinas de trabalho ao compartilhamento dos cuidados com a casa, higiene, alimentação, homeschooling, cuidados e atividades lúdicas com as crianças? Quais as formas e maneiras de pactuar novos jeitos de estarmos juntos?

O isolamento social passou a denunciar e potencializar as angústias individuais, grupais e sociais. Nesse, contexto passamos a atender as escolas privadas e públicas e outros grupos:

Grupos de gestores que demandavam um espaço para compartilhar o vivido e para lidarem com as medidas emergenciais.

Criar novas estratégias de enfrentamento durante as galopantes transformações do cenário educacional em situação de pandemia. Se fortalecer para repensar estratégias de retomadas com acolhimento sócio-emocional dos estudantes e dos profissionais, assim como garantir os protocolos sanitários seguros. Desenvolver novas configurações de relacionamento e comissões de acompanhamento do plano de retorno com as famílias e alunos.

Planejar e reorganizar o calendário, os eventos. Algumas escolas aproveitaram o período para repensar o funcionamento do cotidiano. Investiram em projetos de redesenho da cultura escolar. Avaliar criticamente as perdas e a recuperação da aprendizagem, assim como os ganhos e aprendizados experienciados nesse tempo pandêmico.

Grupos de educadores que precisavam se reinventar em uma pressão e condição inédita. Criar novas formas e redimensionar o papel e a prática profissional. Criar estratégias para compor a vida com as novas rotinas, aprender a lidar com os medos e perdas de entes queridos. Os professores são os recursos escolares mais importantes. Os mesmos passaram a ocupar um novo lugar na vida dos alunos. Para que pudessem cuidar do outro, precisavam de um espaço de autocuidado. Uma nova sala de aula com diferentes tecnologias se instauravam enquanto precisavam acomodar o novo cotidiano.

Grupos de alunos do Ensino Fundamental II em situação de desorganização, tristeza e apatia frente a nova realidade escolar na modalidade remota, oferecemos suporte aos alunos com o Ateliê de Escuta Grupal. Um espaço de acolhimento, escuta e ressignificação das emoções, valores e atitudes de acordo com cada ciclo escolar.

Grupos de alunos do ensino médio angustiados com as perdas das relações sociais sustentadoras nessa fase de vida, dos espaços de convivência e dos ritos de passagem interrompidos, adentramos na grade escolar, dentro das salas de aulas virtuais para compor a nova rotina escolar. Oferecemos um projeto que ajudou a transformar as dores em projetos inspiradores.

Grupos de famílias que precisavam de apoio com rodas de conversas online para lidar com os desafios da intensa convivência, cujos filhos muito pequenos estavam sem o suporte da escola. Com o distanciamento dos alunos pequenos das escolas e diante da impossibilidade das famílias acompanharem o homeschooling imposto pela pandemia, algumas escolas criaram estratégias para fortalecer o compromisso de parceria com seus públicos.

Novamente entramos com o projeto de escuta para acolher e engajar as famílias que, diante desse panorama de perdas, precisavam de um espaço de amparo e ferramentas específicas para lidar com a nova dinâmica de vida e retomada de um trabalho. Diante de um contexto de aprisionamento social e de sentimentos de perdas, de eminência de morte e insegurança, tiveram que lidar com os significativos acréscimos de atividades e funções. Tanto dos afazeres domésticos que eram delegados, quanto aos cuidados dos filhos que até então eram terceirizados. Não havia espaço para acompanhar as crianças pequenas na modalidade imposta de ensino remoto.

Com uma nova rotina profissional, caminhavam de uma tela a outra, tendo que gerenciar as incessantes demandas do trabalho. Outros, angustiados com a perda de trabalho, precisavam de apoio para planejar a retomada e lidar com as incertezas que continuam a ser vividas. A partir da construção dessa rede de apoio, oferecemos um espaço para que pudessem elaborar e criar novos repertórios sócio-emocionais ajudarem-se mutuamente e abrir um novo canal para apoiar os filhos.

Gestores e professores do ensino público que trabalharam incessantemente para manter contato com o público atendido com projetos de busca ativa para acompanhar os alunos.

Alunos do Ensino Médio da escola pública que precisavam de suporte para planejar seus projetos de vida e se organizar com a nova rotina. A maior parte das alunas e alunos não tinham os equipamentos e estrutura de internet para participar das aulas remotas.

Grupos em situação de risco e vulnerabilidade social que, desprotegidos, trabalhando e servindo os que configuram grupos de riscos (pessoas acima de 60 anos, diabéticos, cardíacos, pacientes imunodeprimidos, entre outros).

Grupos de jovens, arrimos de família, que trabalham nos serviços de entrega e suporte de alimentação. Angustiados com o medo de transmitir a doença aos seus familiares e com a impossibilidade de deixar o trabalho.

Os objetivos do programa Escuta Solidária

• Oferecer um espaço de escuta e acolhimento frente a incerteza e sofrimento trazido pelas mudanças radicais na vida cotidiana;
• Promover novos sentidos e significados para esse momento de grandes transformações e angústias;
• Compartilhar novos saberes e buscar criativamente formas para lidar com o novo;
• Ressignificar o “ficar em casa” (que não está nem a serviço de férias, descanso ou momento de relaxamento), a casa passa a ter novas funções.
• Reconhecer no depoimento do momento vivido pelo companheiro de grupo, sentimentos, dificuldades semelhantes e aprender junto com os outros, membros do grupo.

O ensino remoto, assim como a perda das rotinas estabelecidas, trouxeram consequências significativas para todos e principalmente aos alunos. Diante das telas encontramos apatia, ansiedade, desanimo e uma profunda solidão.

Como consequência dificuldades de: organização, estado de perturbação e irritabilidade que denunciavam situações de bastante instabilidade emocional. Alunas e alunos foram convocados como protagonistas, se tornaram agentes da sua transformação. Foram convidados a trazer temáticas de interesses para falar do que dói, do que incomoda, do que angústia a partir de objetos mediadores. Durante o processo de investigação das temáticas, as questões deixavam de ser individuais e passavam a ser consideradas coletivas. A produção grupal permitiu a experiência do protagonismo dos sujeitos do grupo.

Estabelecemos e mantivemos um dispositivo – enquadre com contratos bem-feitos , foram com encontros semanais, no mesmo dia e no mesmo horário com o propósito de brindar um espaço para tecerem juntos uma trama coletiva. Essa trama se constitui através da identificação de demandas comuns e diferentes dos integrantes. Da formação de laços afetivos, que trançam redes. Todos com a condição de protagonismos discursivos, em um processo conjunto de descoberta e reconhecimento do seu próprio desenvolvimento e do coletivo.

As emoções quando escutadas, reconhecidas e ressignificadas, potencializam outras competências, impulsionam novos saberes e práticas para lidar com as vivências. Uma pequena fresta se abre para fortalecer o aprendizado cognitivo de forma crítica e reflexiva. A escuta entre os membros permitiu que fosse possível ouvir para além do que se diz, respeitando o silêncio, considerando os gestos e reconhecendo o tempo do outro. Neste sentido, observamos que a leitura para a comunicação gestual, tão valorizada nos encontros presenciais, mesmo sendo à distância, pode ser captada.

Perante o acontecimento vivido com o Covid-19, nosso intuito foi manter o trabalho junto às esclas, os gestores, os docentes, os alunos e as famílias porque acompanhamos as mudanças provocadas no cotidiano escolar, na vida das pessoas e o sofrimento psíquico provocado na vida de cada um. Essa trama se constitui através da identificação de demandas comuns aos integrantes, formação de laços afetivos, que trançam redes. Todos com a condição de protagonismos discursivos, em um processo conjunto de descoberta e reconhecimento do seu próprio desenvolvimento e do coletivo.

Sandra Tudisco
Coach, Psicodramatista Didata, consultora especialista em processos de mudança e gestão de conflitos organizacionais, apaixonada pela arte da liderança e da reconstrução de histórias de vida.
sandra@mnaroda.com.br